Sunday, August 12, 2007

Bertolt Brecht (a)


Se os tubarões fossem gente (a)

"Se os tubarões fossem gente", perguntou ao senhor K. a miudita de sua senhoria, "não eram mais amigos dos peixes pequeninos?" - "Claro que eram", disse ele. "Se os tubarões fossem gente, mandavam fazer no mar umas casotas espectaculares, cheias de coisas de comer, tanto de plantas como de animais. Haviam de ter todo o cuidado para que as casotas tivessem sempre água fresca e acima de tudo haviam de tomar todo o tipo de medidas sanitárias. Se, por exemplo, um peixinho se magoasse nas barbatanas, faziam-lhe logo uma ligadura, para que o peixinho não lhes morresse a eles, tubarões, antes do tempo. Para que os peixinhos não andassem desconsolados, haveria de vez em quando festas aquáticas magníficas; é que os peixinhos bem-dispostos sabem melhor que os desconsolados. É claro que também haveria escolas nas casotas grandes. Nestas escolas os peixinhos haviam de aprender como é que se nada na bocarra dos tubarões. Haviam de precisar, por exemplo, de Geografia, para poderem ir ter com os tubarões, que andam por aí estendidos a preguiçar. É evidente que o mais importante seria a formação moral dos peixinhos. Ser-lhes-ia ensinado que a coisa melhor e mais linda que havia era um peixinho sacrificar-se com alegria e que tinham todos que acreditar nos tubarões, em especial quando eles dissessem que haviam de preparar-lhes um futuro risonho. Os peixinhos seriam levados a perceber que este futuro só estaria assegurado se eles aprendessem a obediência. Contra todas as inclinações indignas, materialistas, egoístas e marxistas teriam os peixinhos que se precaver e informar imediatamente os tubarões no caso de algum deles dar mostras de qualquer destas inclinações. Se os tubarões fossem gente, também fariam naturalmente guerra uns aos outros, para conquistar casotas e peixinhos estranhos. As guerras, mandá-las-iam fazer pelos peixinhos deles. Fariam ver aos peixinhos que entre eles e os peixinhos dos outros tubarões havia uma diferença abissal. Os peixinhos, proclamariam eles, são mudos, como toda a gente sabe, mas estão calados em muitas línguas diferentes, e daí que seja impossível compreenderem-se uns aos outros. Cada peixinho que matasse na guerra meia dúzia de outros peixinhos, dos inimigos, dos calados numa língua diferente, haviam de condecorá-lo com uma medalhinha feita de algas e atribuir-lhe o título de herói. Se os tubarões fossem gente, haveria naturalmente entre eles uma arte. Haveria belos quadros, em que apareceriam representados os dentes dos tubarões, em cores fabulosas, as bocarras quais jardins de deleite, onde é fabuloso andar a brincar. Os teatros no fundo do mar mostrariam peixinhos heróicos, a nadar entusiasmados pelas bocarras dos tubarões dentro, e a música seria tão bela que, aos seus acordes, com a banda à frente, os peixinhos, sonhadores e embalados em pensamentos estonteantes, se percipetariam aos magotes para dentro das bocarras dos tubarões. É evidente que haveria também uma religião, se os tubarões fossem gente. Ensinaria que os peixinhos só na barriga dos tubarões começam a verdadeira vida. De resto, se os tubarões fossem gente, havia também de se acabar com essa de que os peixinhos, como é agora o caso, são todos iguais. A alguns deles seriam atribuídos cargos e esses seriam colocados acima dos outros. Os maoirzinhos teriam até autorização para comer os mais pequenos. Isso só dava jeito aos tubarões, que assim arranjavam maneira de comer bocados maiores mais vezes. E os peixinhos maiores, os que ocupavam um posto, haviam de zelar pela manutenção da ordem entre os peixinhos, de ser professores, oficiais, engenheiros de casotas e por aí fora. Resumindo, só nessa altura é que passaria a haver no mar uma cultura, se os tubarões fossem gente."


(a) Tirado do livro de BB, Histórias do senhor Keuner

No comments: