Saturday, September 21, 2013

texto nº 3 - dos efeitos das marés nos cabelos das árvores





 texto nº 3

dos efeitos das marés nos cabelos das árvores

Cena
13) Lugar para voltares e veres as mãos cruzadas sobre o peito

No aniversário da morte dos anos, saídos da modorra, eu, contrafeito, estou a um passo de me resolver, e esse não é um perfeito enrolamento a derivar do corpo para a mente, pois essa metamorfose anda dum lado para o outro, à procura de se entreter no balcão das carrinhas de apoio ao dia.
-- Prevejo nesse sempre uma memória concreta.
-- Não há sangue.
-- Nem a morte surge.
-- A não ser nos sonhos.
-- Aí há uma aprendizagem.
-- E o efeito dos velhos sentados nos bancos o mesmo que este.
-- O abandalhamento das almofadas.
-- E uma em vez de duas a correr água para a boca dos enfermos.
-- Esses coloridos.
-- Ao mesmo tempo não se sabe se és tu que andas a ver se carregas.
-- Não pode ser a minha mãe.
-- Não pode ser ela.
-- Também é o mais próximo da dor.
-- A que posso chegar.
-- O muito que se percebe no calor do sol.
-- Ou no apertar do frio sangrento.
-- Que entra nos ossos de minha mãe.
-- Sem a dúvida de estar doente.
-- Dêem.
-- Assim se preferem estar à espera.
-- Outra vez.
-- De sobreviver à desgraça.
-- Que corrói os ossos todos.
-- Os ossos.
-- E todas as carnes.
-- Podres por dentro.
-- Sem que se veja um nada.
-- Só aparece a cara.
-- E os olhos.
-- Desses todos.
-- Na frente do combate.
-- E no velório.
-- Colocadas as mãos.
-- Uma sobre a outra.
-- Sobre o peito mirrado.
-- Mas aí não está ninguém.
-- Porque a alma já se foi para lá.
-- E a mãe.
-- A minha.
-- Deixa de si a vida.
-- Para sempre.
-- E vai na posse de outra.
-- Não da mesma.
-- E assim não se curva.
-- Ao mesmo tempo que se quer.
-- Em frente.
-- No mesmo espaço de tempo.
-- Esse grito não se altera.
-- Quem quer que seja que se amanhe.
-- E a morte das carnes faz-se tempos depois.
-- Na rua é mais difícil.
-- Mas vê-se aquele ali
-- Ao mesmo tempo que se conforma.
-- E no movimento de descer e subir é que está a base do princípio.
-- Quem quer que se exponha tem de principiar por algum lado.
-- Serei eu o primeiro.
-- E mandarei esta bolinha de pão para dentro do copo.
-- E depois nada.
-- Não dá para ver a seguir o que se passa.
-- Uma longe da outra.
-- Aos primeiros dias da estação aparece e desaparece a pretensa lucidez.
-- Mas não tem de ser feminina.
-- Nem masculina.
-- Será a fera existente no muro pintado.
-- Naquelas certas horas da manhã.
-- Às escuras.
-- Aprendes.
-- E voltas a casa num dia certo.
-- Marcas com um dedo o lugar para voltares e veres.
-- Embora os polícias rondem tens de dar-lhes um desconto.
-- Porque estão na hora de trabalho.
Essa rotina de colar cartazes na parede, em frente do olho que de todo é o primeiro que se experimenta; e por aí adiante a ver a organização dos processos a subir a escada escura do prédio; e os olhos estão vazios e cansados.
-- E eu disse sempre que era assim.
-- Mas eles não querem saber do meu cansaço.
-- E eu tenho de fazer alguma coisa.
-- Para me desembaraçar deles.
-- Eles.
-- E eles mais.
-- São eles mil vezes.
-- Eles e mais ninguém.
-- Ao mesmo tempo não se aprende nada.
-- Mesmo nas reuniões.
-- Nessas reuniões colam-se cartazes nas paredes.
-- E pintam-se-lhes com sprays.
-- Elas são o lugar da guerra.
-- E de manhã eu disse-lhes,
-- Tenho de ir comer qualquer coisa.
-- Ao tempo que ando nesta reunião.
-- Aprontando os papéis e os sprays.
-- E eles,
-- E eles mais disseram-me,
-- (Não é hoje mas amanhã).
-- E nessa bondade não há maldade.
-- Nem se encontra o princípio da coerência.
-- Se me percebes.
-- E minha mãe com o coração nas mãos ainda não me viu o dia todo.
-- Estou aqui numa caixa redonda.
-- Automática.
-- Emprestada.
-- E minha mãe torce por mim.
-- E ao mesmo tempo não sei.
-- E deve ser de não me ter ainda despedido dos meus.
-- Que vindo para aqui.
-- Para este lugar.
-- Me estou a preparar para tudo o que vier depois.
-- E esse outro vai assim mesmo para trás.
-- E não está com promessas vãs.
-- Casal amigo deu de deitar fora a água.
-- Vês como és egoísta, -- diz ela.
-- Mas não saberei distinguir muito bem a razão da guerra.
-- Enquanto o homem está impávido e sereno.
-- Nem sei se deva emprestar a figura.
-- Essa de marcha atrás.
-- Não sei das luzes farruscas da sala capitular.
-- Não sei das promessas.
-- Como poderei ver novamente minha mãe?
-- A pensar nela todos dias.
-- A partir de certo momento está mais forte do que eu a baixar o centro.
-- Como será se não vir nada?
-- Que nem de meu pai estou a ver.
-- E nem de meus irmãos.
-- Até agora.
-- E depois passa a ser ao contrário.
Passa a ser o corredor para o terceiro dia, sentado nos bancos a ver o tempo, e a pretensão deles de se verem livres de mim; mas sou eu, aqui, outra vez, sempre a precisar de calma e paciência, pois não há-de ser como eles querem.
-- As minhas pernas são fortes.
-- E o meu coração é melhor do que um relógio suíço.
-- Não volto atrás.
-- Mas isso toda a gente entende.
-- Ao mesmo tempo a mulher do casal levanta-se.
-- E o homem vai atrás.
-- Mas é lá no fim do mundo que esta vitória se dá.
-- Quem poderia vê-la a fugir do demónio cortador de carne fresca para o prato?
-- Todo esse mundo foi dito de outra forma.
-- Está bem.
-- É essa a maneira do casal morrer afogado no rio mesmo ali.
-- As lágrimas deles tão afectados pela ambivalência dos dias.
-- Estão aperaltados os dois.
-- Mas não é desta maneira.
-- E voltam com a cabeça entre as orelhas.
-- Amochados.
-- E eu estou-me marimbando para eles.
-- Outro e outra são assim acessíveis.
-- Corriqueiros.
-- Não te penteies ao espelho.
-- Não vás por aí.
-- O fim está perto.
-- Todas as bonanças serão na parte que te couber.
-- Esta é a primeira vez que acontece.
-- Não.
-- A segunda.
-- O ambiente.
-- Ah, sim.
-- O ambiente vai de carrinho.
-- Mandamentos estão escritos em pedra no monte Sinai.
-- E na costa da Malásia.
Assim, mais forte, quero estar à espera da pescadinha com o rabo na boca, e não outra, a do mensageiro que me irá chegar daqui a pouco, para me dar a notícia do nosso ataque à bomba.
-- Bem feito.
-- Ao casal não se disse isso.
-- Só mesmo com automáticas é que conseguimos entrar pela casa trancada à beira da estrada.
-- Só visto.
-- O mensageiro tem de ter um certo ar respeitável.
-- Na minha frente só a respeitabilidade é boa para o coração não estourar.
-- Vê grande macaco o que é o grão-de-bico com bacalhau.
-- Vê bem na subida da prancha o camaleão, cara de pau.
-- O mensageiro a cem à hora.
-- Estou à espera.




Cena
14) Estou deitado no fundo do poço com uma mão no céu e atrás da morte

-- Do grão.
-- Já que de vez o dia não a noite se pinta para quem me quer bem.
-- Meu amor de ocasião.
-- Se tudo me contar ficará meu coração infinitamente grato.
-- E isso que podia ser não será assim.
-- Mas a vasilha derrama.
-- E a água que corre na valeta escorrega pelos canos todos.
-- Apreendida com o fim certo.
-- Na manjedoura.
-- Essa e outra
-- A vida.
-- A minha.
-- Em discurso directo.
-- Diz a mesma verdade.
-- E aí sentada essa voz vem de trás.
-- Ou do Joni encolerizado.
-- Ali.
-- A mandar pratos para o chão.
-- Sem ver nada senão a forma ensanguentada do céu.
-- Esse outrora descia nas mãos.
-- Mas agora está inquieto.
-- Na base do calor.
-- Não está mais à porta de entrada.
-- Nem meu pai.
-- Nunca esteve aí.
-- Embora eu perceba.
-- Ou tente.
-- Mas estar aqui ou ali não é mais complicado do que parece.
-- Estou num centro onde não queria estar.
-- E estou enganado.
-- Ou eu me engano a mim próprio.
-- Estás lançado na vida.
-- Vais ver como é agora.
-- Nada será como dantes.
-- E todos os lobos nascem na rua.
-- E tenho de os transformar em dóceis seres.
-- E viver atrás deles.
-- Esta cena pode ser.
-- Mas eu não queria que assim fosse.
-- Estou deitado no fundo dum poço com uma mão no céu e atrás da morte.
-- Se ela viesse cortava-me de tudo e eu poderia sobreviver.
-- Mas não é assim nesta hora que nunca é de manhã.
-- Estou a perder o pé mas é porque quero.
-- Uma pipa de vinho.
-- E o cheiro a toalhas limpas de papel.
-- E a claridade que se espalha.
-- Como numa caverna de luz que semeia a ideia e salta para fora.
-- Mas não agora.
-- Estou apropriadamente a ver as minhas mãos.
-- E meu pai na porta de entrada.
-- Mas está calado.
-- Como deve ser.
-- E minha mãe está mais atrás.
-- E tenho que perceber porque estou rodeado de vazio.
Esse impossível dentro desta caixa; e não vejo mais o tal casal que entretanto ficou rodeado por outros roedores da hora do jantar, saídos dos empregos para a grande sala barulhenta; e de repente nada de novo, a não ser que experimente os olhos ou as mãos ou os ouvidos.
-- Querendo não posso.
-- Nem descer a Calçada que segue para o Poço dos Mortos.
-- Fundo e pesaroso.
-- Há atrás de ti uma ideia e outra.
-- E os teus parentes não estão.
-- E tu estás aí no meio da sala à espera.
-- Mas não só.
-- E entra alguém mais o teu irmão.
-- E pergunta,
-- Já comeste?
-- Ainda não.
-- Senta-te.
-- Mas o teu irmão tem outro sítio para estar.
-- Prefere correr o mundo dos vivos.
-- O teu irmão desce do tempo e vai para o sítio dele.
-- Mas continua.
-- E de repente passa a ser outra pessoa.
-- E a tua irmã aparece.
-- Estou aqui.
-- Vim de lá.
-- Estou na escola superior.
-- E estou noutro quarto além do Tejo.
-- E eu digo,
-- Já agora acabo.
-- E vou-me embora.
-- Para trás.
-- Estamos todos entregues.
-- E eu não sei mais nada.
-- E eu vou para trás e ando para a frente.
-- Não estou aqui.
-- Há um certo lugar.
-- Um certo tempo.
-- Uma certa marca de tempo
-- Que deixa de se saber.
E entras dentro de ti mesmo sem olhar para o lado, e de repente percebes que se passou qualquer coisa mas não soubeste de nada, porque não quiseste, ou porque foi assim mesmo; o meu irmão e a minha mãe estiveram no quarto de minha outra irmã, e depois o que se passou entre os dois e entre estes dois tempos é mais complicado saber; o meu irmão e a minha irmã são um mapa de aflição e de ordem, não andando num certo sentido tudo o mais está perdido, é nesse mesmo tempo que o limite se define e que não tendo mão nele parece então que sou o centro do mundo e caio numa profunda guerra com os meus olhos de guerreiro derrotado desde sempre; não tenho a resposta, apenas quero descansar e abandonar, mas não posso, e era o que eu queria, não o que eu podia; está seca a fonte e meu pai está na frente de mim mas não me mete confusão, estou de bem com ele e com todo o mundo, deixo que me sobrem os dedos; e nesses dias as ruas afogam-se na angústia, e nelas a minha alma experimenta ficar num mesmo lugar, paralisada, à espera, mas mesmo assim as minhas pernas continuam a andar, o que me admira muito; estou a perceber que tenho de andar para trás e recompor-me de tudo o mais, e é essa a decisão que devo tomar e depois seguir em frente.
-- Aí não saberei como será.
-- É a desdita.
-- É a primeira vez.
-- Não tenho notícias de minha mãe.
-- Ainda agora mesmo tenho esta decisão metida na cabeça.
-- Sem ter a certeza de nada.
-- Estou numa área tão larga que se torna estreita e me esmaga a respiração.
-- Minha irmã está chegando.
-- Chegou.
-- Está.
-- Mas não sei.
-- Meu irmão está comigo.
-- Estará.
-- Mas eu não sei.
-- Minha irmã ficou lá.
-- Mas eu não sei.
-- Minha mãe ficou.
-- Meu pai veio.
-- Mas eu não sei.
-- A vigia do tempo está onde deve estar.
-- Devemos proceder desta maneira.
-- E construir um modo de cortar este aqui e aquele ali.
-- Os pratos.
-- Quando olho para o chão da sala estão limpos.
-- E novos.
-- E o estrondo do choque foi passageiro.
O Joni está outra vez a dar ordens aos malandros dos empregados, e estes, afogueados, deixam pingar o suor dos rostos nos pratos, amanhados ali à mão de semear, enquanto pela Calçada abaixo não se encontram os outros.
-- As forças correm pelas ruas.
-- No tempo todo há uma intensa guerra de palavras que entra pela porta dentro.
-- Devia então preparar-se a terra para receber as colheitas de inverno.
-- Mas pelo contrário antes deste mês enervo-me.
-- E deixo-me ir pela Calçada abaixo.
-- Foi ontem mesmo.
-- As casas assim mal pintadas com as tintas gastadas.
-- As ervas a crescer nas varandas e no meio das telhas.
-- E as pessoas esfarrapadas ao pé das tascas esvinhadas.
-- À espera dentro duma peça gigantesca.
-- Aí pode ser o esconderijo.
-- Não posso estar a ver como será a coisa.
-- Porque este tempo é mesmo assim.
-- Devo ir para casa mas não vou.
-- Não quero.
-- E tenho raiva de quem for.
-- É um tempo de espera.
-- E eu não sei.
-- Fiquei sem consciência da minha vida.
-- Apenas quero ficar a respirar.
-- Sinto que estou na água.
-- E que me acalcam para baixo.
-- E eu quero respirar e não consigo.
-- Estou com medo.

Cena
15) De eléctrico com ela sentada à janela a caminho de Xotam

-- Não vejo quem me faz isso.
-- Que importância tem?
-- Se nesta hora precisa sou empurrado para baixo?
-- E devo deixar-me levar nessa direcção do fundo.
-- E em duas horas acaba tudo duma vez para sempre.
-- Meu irmão estará em casa.
-- Estamos os dois no mesmo barco.
-- Mas eu tenho que me ir embora.
-- Não consigo aguentar a pressão do afogamento.
-- Eu disse assim,
-- (Tenho de recorrer a uma mulher).
-- (Para que me preste os seus serviços matrimoniais).
-- (Ou seja: quero foder).
-- Eu não quero.
-- Eu renego tudo.
-- E mais umas botas.
-- Não uso outra linguagem.
-- A não ser esta mesma interdita.
-- A todo o ser existente à face da terra.
-- Neste ponto recebo a notícia de que tenho de me ir embora o mais cedo possível.
-- Mas terei de dizer ao meu irmão.
-- Ou ao meu pai.
-- Ou à minha mãe.
-- Custa a saber.
-- A perceber.
-- É preciso.
-- Mas eu não quero.
-- Vou esquecer.
-- Vou saltar por cima de tudo.
-- E fazer o que tenho de fazer à minha custa.
-- E de mais ninguém.
-- Obras de grandes feiticeiros as doenças são intrigantes.
-- Se fosse por isso não dizia nada a ninguém.
-- E deixava-me afogar.
-- E depois não descia nem subia.
-- Era como eu quisesse.
-- Terra de miradouros.
-- Desce o tempo.
-- E sobem na outra margem todos os caminhos.
-- Isso mesmo.
-- O casal.
-- O tal que ali está.
-- Esse que me vai balizar.
-- Estarei o tempo todo fixo nele para saber o dia e a hora de começar.
-- Eu dizia,
-- Esse tempo de acabar está aqui para começar.
-- Tem sido a entrada nas casas velhas para dar a ganhar nada.
-- Tem sido o papel do jornal.
-- E tem sido o tipo a querer vender-mo.
-- E tem sido fugir ao dia.
-- E correr atrás da miséria.
-- E de fazer o frete a mais alguém.
Está tudo como deve ser, e eu estou olhando para o muro, e vejo na minha frente um sujeito de bigode, que é o Xotam, mas ele não está na minha frente, pois anda escondido a mandar-me tarefas para cima do lombo e eu não sei; e parece-me que é assim, mas devo estar a dormir, de certeza; e um vulcão está a cair na minha cabeça, com os meus parentes sem serem meus.
-- Não sou eu.
-- Não estou.
-- Apercebo-me da força.
-- Mas não tenho força.
-- Estou a querer subir à superfície.
-- E esse Xotam é um tipo cheio de mistério.
-- E isso está a passar-me ao lado.
-- Os mistérios todos estão a dar cabo de mim.
-- Mais para o lado que para dentro.
-- Não oiço.
-- Não sei.
-- Tal a minha ignorância.
-- De todos os dias.
-- As tarefas têm um dia marcado.
-- Não estamos bem.
-- E temos uma existência perdida.
-- E estamos bem se formos santos de nosso senhor.
-- As tarefas são como uma teia paralela.
-- Essa tem sido a minha vida cheia delas.
-- Lançadas por Xotam.
-- E nesse ponto da história ninguém quer mais saber de nada.
-- (Meu pai ajude-me a sair deste buraco).
-- (Deste poço de água).
-- Isso gostaria de dizer.
-- Os meus lábios não se abrem.
-- Continuam assim até ao fim do mundo.
-- Porque não te deixas correr?
-- Porque não te largas de ti mesmo?
-- Com um feitio arrenegado.
-- Uma coisa que está presa a si mesma.
-- Ao sacrifício de si mesmo.
-- Quero estar perto.
-- Quero dar tudo para me livrar.
-- Mas não me livro desta praga.
-- Nem dos passos abafados do corredor.
-- O outro Adiposo pode ser que se me esconda no muro das transacções.
-- Pode ser assim mesmo.
-- Talvez me invente a mim próprio ou me deixe disso.
-- Não tenho essa consciência.
-- A mesma que salte fora.
-- E deite no lixo as grilhetas onde vou.
-- Onde meu pai e minha mãe vão.
-- Eu culpo-os por isso mesmo.
-- Culpo-os.
-- E no entanto desculpo-os.
-- Que não sei como há-de ser amanhã.
-- Talvez na próxima viagem que terei de fazer de volta.
-- Não.
-- Eu culpo-os mas não quero culpá-los.
-- Eu deixo-me estar amarrado e não quero.
-- Eu estou solto.
-- Eu estou mas não sei onde.
-- Preso pelo tempo.
-- Preso por nada.
-- Mas tenho de me prender a alguma coisa.
-- Para estar presente aqui mesmo.
-- Com uma mão agarrada à borda.
-- Para não ir ao fundo.
-- E no entanto a força é muita.
-- Que não consigo vencê-la.
-- Já estou agoniado.
-- E posso perder os sentidos.
-- E é aí que acaba tudo mesmo.
-- Terrível situação sem controlo de nada.
-- Não é verdade.
-- Não me digam isso,
-- Não me protejam.
-- Antes matem-me.
-- É melhor que seja desse modo.
-- Os Adiposos estão nas calmas
-- Com as ferramentas de abrir latas a vigiar não se sabe quê ou quem.
-- No entanto.
-- Se esse tempo está inscrito neste tempo mais invisível do que parece as tarefas podem esperar.
-- Mas não esperam.
-- É por isso que estou a perceber alguma coisa.
-- E isso que percebo é a imprecisão das formas.
-- Que não há.
-- Vagueiam entre si com errantes pensamentos.
-- Dum dia para o outro atrás de mim.
-- (A minha missão aqui tem uma importância muito grande), -- diz-me Xotam todas as vezes por interposta pessoa.
-- Eu acredito.
-- Mais temos de fazer.
-- Na minha cabeça é isso que anda à roda da lua.
-- Com os movimentos solitários.
-- Estou a perceber essas voltas gigantes.
-- Mas muito bem pela Calçada descendo.
-- Rolando a dar no Poço dos Mortos.
-- Uma mão atrás de nada.
-- Eu digo,
-- (Vamos ali).
-- A roda está na garantia.
-- Sim.
-- Vamos os dois.
-- Muito bem.
-- Eu ao lado olho por cima do ombro dela.
-- Mas ela é mais alta do que eu.
-- O que é que achas que façamos?
-- Não sei.
-- Temos que ir a casa de Xotam.
-- Para sabermos.
-- Está bem.
-- Então vamos.
Tomamos o eléctrico e partimos, sentados no mesmo banco, e ela sentada à janela; e assim desliza o eléctrico para a casa de Xotam, e foi nessa altura que eu vi as suas mãos, não os dedos brancos; e assim, muito juntas, as mãos em cima do regaço; e dentro do eléctrico, o silêncio daquelas pessoas a olhar, vagamente, para a frente e para os lados, e para os navios atracados nos cais da beira-rio, enquanto as casas correm pelas suas vistas para a casa de Xotam, sem dizer-se nada; mas a rua foi fechada nessa hora, precisamente na altura em que estou aqui, nesta sala de jantar, nessa hora maldita; e ela também, de rosto fechado.

continua...

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