texto nº4 -
do efeito das marés nos cabelos das árvores
Cena
16) Cada palmo de terra tem os dias incertos e as distâncias
não se distinguem muito bem
-- Fecha-me na imobilidade.
-- Ainda que o
eléctrico avance.
-- Não é um
caminho certo que segue.
-- É para mais
um lugar.
-- E a ele nunca
chegarei.
-- Nem à casa de
Xotam.
-- Porque essa
também é para fazer de conta.
-- Como se faz
de conta que há um pensamento por detrás dum nome.
-- Ou uma
vontade.
-- E eu assim
estou a debitar as minhas imagens.
-- Mais do que
seria.
-- Essa ida de
eléctrico.
-- E era uma vez
as casas a correr nos olhos das pessoas a olhar para a variedade do vazio.
-- E os pensamentos
andavam por aí a vadiar.
-- Era para onde
ia a viagem e ela.
-- As mãos dela
no regaço.
-- Ou estariam
na janela?
-- Ou as teria
eu nas minhas?
-- Que não.
-- Que nunca
seria assim.
-- Esse perfeito
entendimento.
-- E depois
chegaria a casa de Xotam.
-- O grande
líder.
-- Para ficar
ainda mais cheio de veneno.
-- Para destilar
lá onde quisesse.
-- Ou não quisesse.
-- E essa devia
ser a verdade das verdades.
-- E se por
qualquer motivo não quisesse que deixasse de dormir.
-- Ou de ir
noutra direcção.
-- Esse sono já
seria demais.
-- Eu devia
descer a Bica.
-- E voltar a
subir até me cansar bastante.
-- E ir comer a
outro sítio.
-- Para não
estar a ver estas coisas engalfinhadas em frangos.
-- E outras
coisas que tais.
-- Mas estou
aqui e hei-de estar.
-- Não me parece
que me vá deixar de ir para o quarto de cima.
-- Ou sim.
-- Irei para o
mesmo sítio que encontrei.
-- E da mesma
forma pescarei.
-- E tomarei o pequeno-almoço.
-- Mas não em
casa.
-- Tem de ser no
café.
-- Ou tomarei
apenas uma bica.
-- E fumarei um cigarro.
-- Mas é assim
mesmo que faço sempre.
-- Eu e mais meu
irmão.
-- Por vezes ele
vai a horários diferentes.
-- E só nos
encontramos para dormir.
-- Cada um se
desenrasca o melhor que sabe.
A clarabóia
virada para o céu e os sono-uva ali ao lado, bem-dispostos, a rir, e a descer e
a subir escadas, e a gente ouve e adormece, e a gente canta e dança com eles e
elas, porque são gente muito alegre e convidam logo uma pessoa; e há também um
galego, mas desse só se ouve água a correr, e fechar e abrir de portas, mais nada;
e o catarro e os cabelos na banheira.
-- A senhora
Rapoula arrasta os pés nos corredores alcatifados.
-- Ela não se apercebe.
-- É do terreno
alcatifado.
-- Ela está a
vigiar a propriedade.
-- Com o mais
tardar e o menos parar.
-- E as noites
passam-se com o som da cidade lá longe.
-- Até que
cresce o tempo.
-- E o vento
levanta as telhas.
-- Essas vão
parar ao rio.
-- Dia sim.
-- Dia não.
-- Com o
conhecimento dos anjos.
-- Que dura para
sempre irrequieto.
-- Está uma
rapariga no outro lado da rua.
-- Por cima dos
telhados.
-- Assim
-- E as camas a
dar das camaratas.
-- São estas que
se prendem com o tempo.
-- Não tem a
importância que se lhe dá.
-- As cartas
depois vêm.
-- E depois o
ritmo epistolar continua.
-- Para além do
miradouro.
-- Virado para as
vistas do horizonte.
-- Um pouco.
-- Como o espeto
de pau não espeta no coiro espeta no olho.
-- É esse o
terreno estreito que se tem para se viajar nas portas dos quartos.
-- Como estás.
-- Bom.
-- Estou bem.
-- Eu hoje tenho
uma frequência.
-- Estou lixado.
-- Não sei nada.
-- Mas está bem.
-- Até logo e
boa sorte.
-- Pois é.
-- Vai-te lixar.
-- Não.
-- Mas o que
estás tu a dizer.
-- É isso mesmo.
-- Não sei de
nada.
-- Não sei como
é que vai ser.
-- Vai ser tudo
como deve ser.
-- Bem.
-- Isso não interessa.
-- Como é que tu
sabes?
-- Eu sei.
-- Pois.
-- Então.
-- Vamos mas é
dormir.
-- O labirinto
da cena entra pela cabeça dentro.
-- Leva para outro
lugar
-- E lá atrás
está o pai e a mãe.
-- Como é que estás?
-- Não estou
muito bem.
-- Mas vai
andando.
-- (Teu pai está
ali).
-- (Teu pai não
me dá o dinheiro para as compras).
-- (Amanhã ele
vai-me dar).
-- (ele é uma
luta para me dar o dinheiro).
-- (Eu preciso
mas a gente tem de poupar).
-- (Olha, fica
com aquelas calças que vieram da América).
-- Então, tá bem,
mãe.
-- Mas, diz-me,
estás bem?
-- Estás com o
coração a bater muito depressa.
-- Estou.
-- Não te
preocupes.
-- Adeus.
E o pai e o
irmão, e a família, percorrem um sistema de ruas diferentes, com direcções
diferentes; e cada palmo de terra a percorrer tem os dias incertos; e as
distâncias não se distinguem muito bem; e é o tempo de se mostrar outra vez o
pano da cena; e descer o monte para trás da cabeça.
-- Está bem
assim.
-- Nessa moleira.
-- Percorrida
pelas distâncias perdidas.
-- Essas a
correr.
-- E demais a
mais não me quero encontrar com Xotam.
-- Porque tenho
as tarefas de casa para fazer.
-- Com toda a
dedicação.
-- Não se passe
o controlo da situação.
-- Estão bem de
cabeça.
-- E não é no
tempo dos Adiposos.
-- É noutro que
calha.
-- Que os sem
narizes mostrem os narizes.
-- E os dos
narizes fiquem com os narizes.
-- Para poder
enfrentar o novo entrado a matar.
-- Um de entre eles.
-- Não de outrem.
-- Podia eu
correr para lá e para cá.
-- Foi o que eu
fiz a correr.
-- A correr na
rua.
-- Para um lado
e para o outro.
-- Não um nome.
-- Não uma voz.
-- Mas nas
entrelinhas.
-- A memória não
está bem.
-- E funciona num
dia assim.
-- E num dia
menos assim.
-- Sem ninguém
lá dentro.
-- Tenho de
tentar ouvir e perceber as coisas como têm sido.
-- Como estão.
-- Como vão ao princípio
do tempo.
-- O assunto não
está ponderado.
-- É o primeiro
de entre outros.
-- Nas ruas inclinadas
as casas fechadas.
-- E a gente de
dentro não deixa entrar a gente de fora.
-- Não estou a
seguir nesta categoria.
-- Eu estou na
gente de fora a querer entrar na gente de dentro.
-- E as portas
estão fechadas.
E os tiros na
rua estoiram; e o que tenho de fazer é deitar-me no chão, debaixo dum carro, ou
melhor, talvez para fugir às balas piores da vida; e as mesmas, nas escadas das
casas, ou nos prédios enferrujados; e os prédios, e as fachadas a fim de serem
vendidas; e as galinhas poedeiras nas gaiolas; e as casas acasteladas e vazias,
e fechadas, para um dia não haver nada no fim do mandato.
-- Quem se
quiser deitar ao rio que o faça.
-- Não tenho
nada a ver com o assunto.
-- De mais a
mais a doca fica lá em baixo.
-- E o aeroporto
lá em cima.
-- E a outra
margem no outro lado do rio.
-- Como é dado.
-- Está desta maneira
inventado o percurso oferecido de bandeja.
-- Pobres homens
que não sabem escrever o nome.
-- Mas sabem
cantar aqui ao lado nas obras.
-- E os ventos a
cheirar a comida boa.
-- Que faz salivar
de fome.
-- Que é muita.
-- Mas todos os
dias nos congratulamos.
-- Uma bica.
-- Um cigarrinho.
-- E está a
andar.
Mas é fome não
saber, e eles sabem que a gente come mal, mas não há interesse, pois duas vezes
ao dia o galo canta e o carro apita; e a fábrica, e as buzinas dos navios, lá em
baixo, também apitam.
Cena
17) Na frente da tela as passagens dos soldados dos pés
apressados
Esganiçadas, e todos
a ver na espuma das ondas, tantos os barcos no rio que a navegar ninguém sabe, a
não ser que mereça aproveitar, com os olhos os olhos dos outros, na esperança
de viver mais dias que os outros, aqueles que se enfileiram, à espera de alguma
coisa; mas eu não sei bem, pois em princípio parece que é comida, dada pelos Anemizados,
à espera dos dias de crise.
-- Esses custam
mais a passar.
-- Se à custa duma
côdea de pão está uma côdea que já não há.
-- Mas assim entre
prateleiras dos armazéns há sim longas horas de espera.
-- Um de entre
todos está na mesa com o prato da sopa na frente.
-- E de todos os
outros é o que nem vê.
-- O que se passa
à volta.
-- Está só
concentrado na sopa de couves.
-- Com umas
cenouras cozidas a boiar.
-- E o barulho à
volta nem se ouve.
-- Nem há-de ser
mais nada do que em frente se ouve.
Não se ouve se é
ou se não é; e morres à paulada, dentro duma furgoneta, por num dia nocturno te
cruzares com o demónio vestido de gente.
-- É uma delícia
ver o sangue e a caca a escorrer nos cantos bem lavados das casas mistério.
-- E não há dúzias
de invisibilidades.
-- E as anemizadas
à frente são a tropa de choque.
-- Não é.
-- Achas que a
tua gente é pouca para isso?
-- Que tu és
pouco para isso?
-- Bastas apontares
o dedo e estás assim.
-- Estás aí.
-- E eu vou por
entre os pratos lavados da cozinha a vomitar a pescadinha com o rabo na boca.
-- Da alface com
as bactérias especiais.
-- Sabe-se a
vergonha geral.
-- E tenho as
tripas a esvaziarem-se-me.
-- Mas é assim
na altura de olhar para fora.
-- Para o Joni
esgazeado, já fora de cena.
-- Mas o tal
casal fugiu.
-- Demais a mais
só há gente vestida de casacos azuis.
-- Estão a ver televisão.
-- Têm camisas
brancas.
-- E gravatas azuis
ligeiramente diferentes da cor dos casacos.
-- É um bem de
ver todos a uma voz.
-- O meu escarro.
-- O meu vómito.
-- Não sei
porquê.
-- Eu pensei que
ia sair tudo limpinho mas não.
-- Eu deixei que
se me embrulhasse o estômago.
-- E corri não
sabendo bem para onde.
-- A não ser que
vomitasse no chão.
-- Que era o que
ia acontecer.
-- Não fosse eu
mais papista que o papa.
-- Era um dia
igual a outro.
-- O sol girava.
-- A terra daria
nada na roda dos anos.
-- Por isso o
que é que eu queria de concreto?
A verdade foi
que a miúda, a tal que era suposto ir de eléctrico comigo, estava a ver o que
eu fazia, com um cigarro entalado nos lábios, na minha frente.
E eu digo assim:
-- Como é que
pode ser?
-- Estarei a
perder sangue?
-- Não.
-- Se o
contrário acontecer.
-- E a beleza
dela não questiono.
-- É um fantasma
porque não diz nada.
-- E os tipos
são da polícia.
-- As fardas deles.
-- Foi o que
disse.
-- Mas podia ser
outra gente.
-- A chegar de dentro
das mesas ou da cozinha.
-- Não sei.
-- Toda esta
limpeza que me rodeia tem uma sina própria.
-- E é por isso
que o sangue não é vermelho.
Digo para mim
mesmo,
-- (O que será
que neste mês está a acontecer nesta sala tão luminosa)?
-- (Que esclarecimentos
são precisos ter)?
-- Estão de boca
aberta.
-- De certeza
meus avós que andaram no mundo dos comboios.
-- Nas planícies.
-- A recolher os
mortos das epidemias.
-- E atrás está
o vento da terra.
-- Da ilha para
o continente.
-- Este é um
costume atlântico que está impregnado.
-- Não é por
isso que nasce quem nasce e morre quem morre.
-- Não é neste
instante para sempre uma divisão interna entre água e terra.
-- As vísceras dos
porcos são lavadas no mar.
-- E são cheias
de carne.
-- A visão então
é alargada para o mundo.
-- Depois fica
outra vez assim pequena.
-- Estou a ver o
morto mirrado no quarto.
-- Num quarto de
terra batida.
-- Todo o mundo
vê os miúdos andando de pé descalço de roda da paisagem.
-- E é assim mesmo.
-- Nesse dia a cidade
na outra margem da terra nasce.
-- E os seus
corpos são vomitados.
-- E os Anemizados
mais as suas jóias dão cumprimentos.
-- O presidente
tem uma preocupação danada.
-- Está à porta
com um sorriso aberto de coração cheio.
-- É no primeiro
dia do ano.
-- Que se enche
de carne a pele para parecer bem.
-- Não que seja
um desejo meu.
-- Mas é nesse
entender que se giza isso.
-- Para não se
frequentar a escola.
-- Na hora os
berços não se opunham.
-- Na hora dá
para perceber a clara paisagem.
-- E depois como
é depois do meu vómito?
-- Não estão a
perceber.
-- Eu quero
estar sossegado.
-- Comer o meu
jantar numa posição fetal.
-- Com a graça
do senhor.
-- O vómito veio
a despropósito.
-- Se calhar
estava a precisar disso.
-- Os pratos
limpos da cozinha ficaram uma desgraça.
-- Não
participei do antigo combate.
-- Nem disse
nada a ninguém.
-- É um fedor de
todo o tamanho.
-- Está alguém
lá fora.
-- Com o tempo à
espera.
-- De mais não
tenhas dúvidas.
-- A rapariga
terá um nome.
-- Mas eu vejo-a
tão santa.
-- Vou vê-la
pelo sexo dela.
-- É melhor.
-- Porque não
tenho qualquer desejo de manter.
-- Ou tenho.
-- Talvez tenha.
-- Estou na
primeira fila a ver os filmes inteiros do Piolho.
-- É sempre por
aí.
-- Aquela luz
farrusca.
-- Alguém que se
escapa pelas sombras.
-- O fumo que
vem.
-- O fumo que
vai pelas sombras dos candeeiros.
-- Um farrapo de
gente sentado na ombreira duma porta.
-- Com as carnes
amareladas.
-- A mão estendida.
Na frente da
tela, as passagens dos soldados dos pés apressados, nas ruas adormecidas,
apesar de não estarem; mas se estão é porque o feiticeiro maldito quis.
-- Foi portanto
a ideia do filme a todas as horas.
-- Eu vou por um
tostão de vez em quando.
-- Não há uma
dúzia de balcões.
-- Não está o
expediente.
-- A portinhola.
-- O cigarrinho
lá dentro.
-- A bilheteira enfumarada.
-- Alguém troca os
dedos amarelos do tabaco por uma bexiga de pato.
-- Com carneiro afogado
em sangue de burro.
-- Já basta que
o filme se retracte.
-- Já basta que
o filme não adormeça.
-- É ao mesmo
tempo a flor do dia.
-- As sombras da
noite.
Ao mesmo tempo
teria de ir a correr para a cama com medo de não acordar amanhã; mas vai ser um
belo dia amanhã, com um belo dia nas mãos; e é isso, a ver assim, que é melhor
do que não ver o lado de lá da questão; mas é menos do que se faz todos os dias;
é a falta de vontade que dá no que dá.
Cena
18) Retracto
(Os soldados invadem
a cidade, casas destruídas, soldados ao assalto casa a casa, fugas, confusão
total, mortos, mortos, mortos, fugir, fugir; o olho, no ar, que acompanha a
cena, vê, de repente, um homem quadrado, moldado como se fosse um pão de forma,
achatado; e o olho percebe, porque há uma passagem, umas escadas, que vão dar a
esse pátio onde está o homem, e que servem de passagem a esse mesmo homem; essas
escadas, essa passagem, tem dois macacos hidráulicos que comprimem os muros da
passagem e estreitam-na; o homem foi passando e passando, e o corpo ficou
espalmado, agora esse pátio é o seu refúgio; os soldados quando aí chegam
julgam que é uma passagem como as outras, mas quando tentam passá-la percebem
que é impossível, e não entram, só entra o homem achatado, e se o homem quiser
fechar a passagem pode fazê-lo muito bem, basta que os hidráulicos apertem os muros,
que se juntam, formando um só muro, e a passagem desaparece; querendo abrir a
passagem basta descomprimir os hidráulicos e cá temos a passagem do homem
enlatado; o olho vê isso e está cheio de ideias; os soldados continuam a matar
na cidade).
Cena
19) Por esta razão e não por outra o estrondo da bomba
embora me tenha assustado não me amedrontou
-- A um tempo
passageiro.
-- Noutro
complexo.
-- Nada
aproveitável.
-- É que não
posso deixar de ter sono.
-- Ao mesmo
tempo gostaria de ficar acordado sempre.
-- Para
controlar o tempo.
-- Era esse o desejo
de qualquer um.
-- Que se
dignasse perceber.
-- Se os meus
passos iam para casa depois do filme a minha mente ia para dentro de mim.
-- Com o medo estampado
em nada.
-- Não que me quisesse
perder.
-- Mas pensava.
-- Se acaso seria
necessário.
-- Ou pensava.
-- Mais ou menos.
-- Que era essa
garantia.
-- Ainda que não
me visse a mim mesmo.
-- Ou só como
uma coisa a navegar no mar agitado.
-- Eu mesmo.
-- Com as breves
ideias do que eu era sem querer ser.
-- Não nascendo.
-- Querendo
antes retroceder.
-- Mas já não se
podia fazer isso.
-- Com estas
andanças todas de cima para baixo.
-- E de baixo
para cima.
-- Como poderia
ser?
-- Era o que me perguntava.
-- Mas o negócio
continuava.
-- Em frente do
largo.
-- Aquele mesmo
que tinha nome.
-- Mas depois
percebi que não era verdade.
-- Estava
apanhado de todo.
-- O meu sexto
sentido.
-- Olhava por mim
mesmo.
-- Não se
desgostava.
-- Era assim a
terra do bom senso.
-- Sem a primeira
volta a dar.
-- Os carecidos
não se podiam mexer.
-- Mesmo que
quisessem.
-- Eu estava a
ver que deveria entrar por esse caminho.
-- Ainda que
fosse improvável.
-- (Porque eu
vou morrer), -- digo aqui e agora com todos os dentes que tenho.
-- Partidos e
esfolados vivos.
-- Os desejos
dos muitos contra os de alguns.
-- Deitados nas
suas almofadas de igreja.
-- Está bem
assim.
-- Ao que tudo
indica é o princípio da previdência dos povos.
-- E se um diz o
outro confirma.
-- Muito bem
dito.
-- Na minha sala
comprida.
-- Sabes tu.
-- Ou não sabes.
-- Estás ou não
estás a olhar para o teu corpo?
-- Não o podes
fazer.
-- O tempo que
gastas todo nisso.
-- Ou então
ficas a meditar.
-- Feito budista
na tua cadeira.
-- O que não
pode ser.
-- Porque toda a
gente fica a ver.
-- É difícil
encontrar uma solução para estas coisas.
-- A não ser que
deixes o pensamento à solta.
-- E aí sim.
-- Vais para a
tua família.
-- Assim mesmo.
-- Eu vou para a
minha família.
-- Mas não tenho
solução.
-- A partir do
momento em que deixei a casa de meus pais fiquei por minha conta.
-- Era isso que
eu não queria.
-- Era isso que
me andava a chatear.
-- A remoer.
-- Todos os dias
da minha vida.
-- Mas essa
contradição não podia ter fim.
-- Senão todo o engendrado
caía aos pedaços.
-- Como cheguei
até aqui hoje?
-- A este
estado?
-- À sala de jantar?
-- Com o casal
pindérico na minha frente?
-- Dá-me cabo da
tola.
-- Tenho de me
agarrar a ele senão despisto-me.
-- A ver os
outros.
-- A correr dum
lado para o outro.
-- Não.
-- Os homens de
fatos azuis impecáveis.
-- Sentados nas
cadeiras.
-- E mulheres também.
-- Com as caras
esfíngicas.
-- Numa mesa que
há ali à frente.
-- Uma mesa
enorme.
-- Para onde o Joni
vermelhuço leva canecas de cerveja.
-- E frangos
assados na brasa.
-- Estaladiços.
E toda a gente
está bem-disposta, e daqui a pouco há folia, a não ser que o Joni mande vir a polícia,
enquanto os rapazes também vão bebendo imperiais às escondidas do Joni; e estão
numa galhofa, a correr dum lado para o outro, com as taças e os pratos, e essa
caterva de serviços a prestar com grande velocidade, num corrupio.
-- Mas não é
esse o intento.
-- Pode ser
outro.
-- A minha vinda
donde vim.
-- Eu sim.
-- Vim de lá de
fora cá para dentro dum sítio para o outro.
-- Para me
aquecer neste calor humano.
-- Porque vivo
naquele quarto isolado.
-- Embora
quisesse ficar com outras pessoas.
-- Embora
estivesse e esteja com outras pessoas.
-- Embora esteja
com meus irmãos estou sozinho.
-- Não sei
porquê.
-- Ou sabendo
não me quero comprometer a não ser às vezes.
E apesar do
barulho dos homens de fatos azuis, mais forte é o barulho da rua, agora neste
próprio momento, porque uma bomba
arrebentou lá fora, e toda a gente ficou de boca aberta, e assustada.
-- Ainda vêm aí.
-- Ainda nos vão
dar cabo do canastro.
-- É o que se
diz à boca pequena.
-- Com a
agravante de que não se percebe.
-- Se é por
linhas e círculos que estão a vender o pescado.
-- Não
-- Nessa altura
por dentro está a minha palavra.
-- É isso que
sei.
-- Mas a minha
palavra não serve para nada.
-- Berra no
vazio e na inconsistência.
-- Como o tempo
é de corrida.
-- Como o tempo
se atrasa não sei.
-- Se em todo o
mundo os desígnios de deus estão bem arquitectados.
-- Esse que
ignoro.
-- Ainda que me
tivesse redimido.
-- Com as suas
janelas brancas de luz.
-- A entrar no
seu templo.
-- Nos confins
entre árvores frondosas.
-- Aí deus é o
princípio que se percebe às vezes.
-- Pela
claridade que mostra.
-- Que encandeia
em vez de iluminar.
Por essa razão, o
estrondo da bomba embora me tenha
assustado não me amedrontou, porque, para mim, tudo está acontecendo longe todo
o tempo.
-- É essa a verdadeira
pendência.
-- Os alarves
dos homens de fatos azuis lá pularam das cadeiras.
-- E o casal.
-- E todos os
outros pularam como molas.
-- Depois
ficaram sentados a comer.
-- Afinal tinha
sido lá longe.
-- Daqui a pouco
aparecia na televisão os estragos feitos pela dita.
-- Todos ficariam
a saber que desgraça fora.
-- Era essa a
primeira vez.
-- Se vais para
casa desvia-te para o lado.
-- Se vais
fornicar faz a mesma coisa.
São estes os
conselhos, daqui do banco da cozinha, ao preço da chuva, e são conselhos muito
bons, que devem a todos deslumbrar.
continua...
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