Monday, September 23, 2013

texto nº4 - do efeito das marés nos cabelos das árvores










texto nº4 - 

do efeito das marés nos cabelos das árvores

Cena
16) Cada palmo de terra tem os dias incertos e as distâncias não se distinguem muito bem

-- Fecha-me na imobilidade.
-- Ainda que o eléctrico avance.
-- Não é um caminho certo que segue.
-- É para mais um lugar.
-- E a ele nunca chegarei.
-- Nem à casa de Xotam.
-- Porque essa também é para fazer de conta.
-- Como se faz de conta que há um pensamento por detrás dum nome.
-- Ou uma vontade.
-- E eu assim estou a debitar as minhas imagens.
-- Mais do que seria.
-- Essa ida de eléctrico.
-- E era uma vez as casas a correr nos olhos das pessoas a olhar para a variedade do vazio.
-- E os pensamentos andavam por aí a vadiar.
-- Era para onde ia a viagem e ela.
-- As mãos dela no regaço.
-- Ou estariam na janela?
-- Ou as teria eu nas minhas?
-- Que não.
-- Que nunca seria assim.
-- Esse perfeito entendimento.
-- E depois chegaria a casa de Xotam.
-- O grande líder.
-- Para ficar ainda mais cheio de veneno.
-- Para destilar lá onde quisesse.
-- Ou não quisesse.
-- E essa devia ser a verdade das verdades.
-- E se por qualquer motivo não quisesse que deixasse de dormir.
-- Ou de ir noutra direcção.
-- Esse sono já seria demais.
-- Eu devia descer a Bica.
-- E voltar a subir até me cansar bastante.
-- E ir comer a outro sítio.
-- Para não estar a ver estas coisas engalfinhadas em frangos.
-- E outras coisas que tais.
-- Mas estou aqui e hei-de estar.
-- Não me parece que me vá deixar de ir para o quarto de cima.
-- Ou sim.
-- Irei para o mesmo sítio que encontrei.
-- E da mesma forma pescarei.
-- E tomarei o pequeno-almoço.
-- Mas não em casa.
-- Tem de ser no café.
-- Ou tomarei apenas uma bica.
-- E fumarei um cigarro.
-- Mas é assim mesmo que faço sempre.
-- Eu e mais meu irmão.
-- Por vezes ele vai a horários diferentes.
-- E só nos encontramos para dormir.
-- Cada um se desenrasca o melhor que sabe.
A clarabóia virada para o céu e os sono-uva ali ao lado, bem-dispostos, a rir, e a descer e a subir escadas, e a gente ouve e adormece, e a gente canta e dança com eles e elas, porque são gente muito alegre e convidam logo uma pessoa; e há também um galego, mas desse só se ouve água a correr, e fechar e abrir de portas, mais nada; e o catarro e os cabelos na banheira.
-- A senhora Rapoula arrasta os pés nos corredores alcatifados.
-- Ela não se apercebe.
-- É do terreno alcatifado.
-- Ela está a vigiar a propriedade.
-- Com o mais tardar e o menos parar.
-- E as noites passam-se com o som da cidade lá longe.
-- Até que cresce o tempo.
-- E o vento levanta as telhas.
-- Essas vão parar ao rio.
-- Dia sim.
-- Dia não.
-- Com o conhecimento dos anjos.
-- Que dura para sempre irrequieto.
-- Está uma rapariga no outro lado da rua.
-- Por cima dos telhados.
-- Assim
-- E as camas a dar das camaratas.
-- São estas que se prendem com o tempo.
-- Não tem a importância que se lhe dá.
-- As cartas depois vêm.
-- E depois o ritmo epistolar continua.
-- Para além do miradouro.
-- Virado para as vistas do horizonte.
-- Um pouco.
-- Como o espeto de pau não espeta no coiro espeta no olho.
-- É esse o terreno estreito que se tem para se viajar nas portas dos quartos.
-- Como estás.
-- Bom.
-- Estou bem.
-- Eu hoje tenho uma frequência.
-- Estou lixado.
-- Não sei nada.
-- Mas está bem.
-- Até logo e boa sorte.
-- Pois é.
-- Vai-te lixar.
-- Não.
-- Mas o que estás tu a dizer.
-- É isso mesmo.
-- Não sei de nada.
-- Não sei como é que vai ser.
-- Vai ser tudo como deve ser.
-- Bem.
-- Isso não interessa.
-- Como é que tu sabes?
-- Eu sei.
-- Pois.
-- Então.
-- Vamos mas é dormir.
-- O labirinto da cena entra pela cabeça dentro.
-- Leva para outro lugar
-- E lá atrás está o pai e a mãe.
-- Como é que estás?
-- Não estou muito bem.
-- Mas vai andando.
-- (Teu pai está ali).
-- (Teu pai não me dá o dinheiro para as compras).
-- (Amanhã ele vai-me dar).
-- (ele é uma luta para me dar o dinheiro).
-- (Eu preciso mas a gente tem de poupar).
-- (Olha, fica com aquelas calças que vieram da América).
-- Então, tá bem, mãe.
-- Mas, diz-me, estás bem?
-- Estás com o coração a bater muito depressa.
-- Estou.
-- Não te preocupes.
-- Adeus.
E o pai e o irmão, e a família, percorrem um sistema de ruas diferentes, com direcções diferentes; e cada palmo de terra a percorrer tem os dias incertos; e as distâncias não se distinguem muito bem; e é o tempo de se mostrar outra vez o pano da cena; e descer o monte para trás da cabeça.
-- Está bem assim.
-- Nessa moleira.
-- Percorrida pelas distâncias perdidas.
-- Essas a correr.
-- E demais a mais não me quero encontrar com Xotam.
-- Porque tenho as tarefas de casa para fazer.
-- Com toda a dedicação.
-- Não se passe o controlo da situação.
-- Estão bem de cabeça.
-- E não é no tempo dos Adiposos.
-- É noutro que calha.
-- Que os sem narizes mostrem os narizes.
-- E os dos narizes fiquem com os narizes.
-- Para poder enfrentar o novo entrado a matar.
-- Um de entre eles.
-- Não de outrem.
-- Podia eu correr para lá e para cá.
-- Foi o que eu fiz a correr.
-- A correr na rua.
-- Para um lado e para o outro.
-- Não um nome.
-- Não uma voz.
-- Mas nas entrelinhas.
-- A memória não está bem.
-- E funciona num dia assim.
-- E num dia menos assim.
-- Sem ninguém lá dentro.
-- Tenho de tentar ouvir e perceber as coisas como têm sido.
-- Como estão.
-- Como vão ao princípio do tempo.
-- O assunto não está ponderado.
-- É o primeiro de entre outros.
-- Nas ruas inclinadas as casas fechadas.
-- E a gente de dentro não deixa entrar a gente de fora.
-- Não estou a seguir nesta categoria.
-- Eu estou na gente de fora a querer entrar na gente de dentro.
-- E as portas estão fechadas.
E os tiros na rua estoiram; e o que tenho de fazer é deitar-me no chão, debaixo dum carro, ou melhor, talvez para fugir às balas piores da vida; e as mesmas, nas escadas das casas, ou nos prédios enferrujados; e os prédios, e as fachadas a fim de serem vendidas; e as galinhas poedeiras nas gaiolas; e as casas acasteladas e vazias, e fechadas, para um dia não haver nada no fim do mandato.
-- Quem se quiser deitar ao rio que o faça.
-- Não tenho nada a ver com o assunto.
-- De mais a mais a doca fica lá em baixo.
-- E o aeroporto lá em cima.
-- E a outra margem no outro lado do rio.
-- Como é dado.
-- Está desta maneira inventado o percurso oferecido de bandeja.
-- Pobres homens que não sabem escrever o nome.
-- Mas sabem cantar aqui ao lado nas obras.
-- E os ventos a cheirar a comida boa.
-- Que faz salivar de fome.
-- Que é muita.
-- Mas todos os dias nos congratulamos.
-- Uma bica.
-- Um cigarrinho.
-- E está a andar.
Mas é fome não saber, e eles sabem que a gente come mal, mas não há interesse, pois duas vezes ao dia o galo canta e o carro apita; e a fábrica, e as buzinas dos navios, lá em baixo, também apitam.   

Cena
17) Na frente da tela as passagens dos soldados dos pés apressados

Esganiçadas, e todos a ver na espuma das ondas, tantos os barcos no rio que a navegar ninguém sabe, a não ser que mereça aproveitar, com os olhos os olhos dos outros, na esperança de viver mais dias que os outros, aqueles que se enfileiram, à espera de alguma coisa; mas eu não sei bem, pois em princípio parece que é comida, dada pelos Anemizados, à espera dos dias de crise.
-- Esses custam mais a passar.
-- Se à custa duma côdea de pão está uma côdea que já não há.
-- Mas assim entre prateleiras dos armazéns há sim longas horas de espera.
-- Um de entre todos está na mesa com o prato da sopa na frente.
-- E de todos os outros é o que nem vê.
-- O que se passa à volta.
-- Está só concentrado na sopa de couves.
-- Com umas cenouras cozidas a boiar.
-- E o barulho à volta nem se ouve.
-- Nem há-de ser mais nada do que em frente se ouve.
Não se ouve se é ou se não é; e morres à paulada, dentro duma furgoneta, por num dia nocturno te cruzares com o demónio vestido de gente.
-- É uma delícia ver o sangue e a caca a escorrer nos cantos bem lavados das casas mistério.
-- E não há dúzias de invisibilidades.
-- E as anemizadas à frente são a tropa de choque.
-- Não é.
-- Achas que a tua gente é pouca para isso?
-- Que tu és pouco para isso?
-- Bastas apontares o dedo e estás assim.
-- Estás aí.
-- E eu vou por entre os pratos lavados da cozinha a vomitar a pescadinha com o rabo na boca.
-- Da alface com as bactérias especiais.
-- Sabe-se a vergonha geral.
-- E tenho as tripas a esvaziarem-se-me.
-- Mas é assim na altura de olhar para fora.
-- Para o Joni esgazeado, já fora de cena.
-- Mas o tal casal fugiu.
-- Demais a mais só há gente vestida de casacos azuis.
-- Estão a ver televisão.
-- Têm camisas brancas.
-- E gravatas azuis ligeiramente diferentes da cor dos casacos.
-- É um bem de ver todos a uma voz.
-- O meu escarro.
-- O meu vómito.
-- Não sei porquê.
-- Eu pensei que ia sair tudo limpinho mas não.
-- Eu deixei que se me embrulhasse o estômago.
-- E corri não sabendo bem para onde.
-- A não ser que vomitasse no chão.
-- Que era o que ia acontecer.
-- Não fosse eu mais papista que o papa.
-- Era um dia igual a outro.
-- O sol girava.
-- A terra daria nada na roda dos anos.
-- Por isso o que é que eu queria de concreto?
A verdade foi que a miúda, a tal que era suposto ir de eléctrico comigo, estava a ver o que eu fazia, com um cigarro entalado nos lábios, na minha frente.
E eu digo assim:
-- Como é que pode ser?
-- Estarei a perder sangue?
-- Não.
-- Se o contrário acontecer.
-- E a beleza dela não questiono.
-- É um fantasma porque não diz nada.
-- E os tipos são da polícia.
-- As fardas deles.
-- Foi o que disse.
-- Mas podia ser outra gente.
-- A chegar de dentro das mesas ou da cozinha.
-- Não sei.
-- Toda esta limpeza que me rodeia tem uma sina própria.
-- E é por isso que o sangue não é vermelho.
Digo para mim mesmo,
-- (O que será que neste mês está a acontecer nesta sala tão luminosa)?
-- (Que esclarecimentos são precisos ter)?
-- Estão de boca aberta.
-- De certeza meus avós que andaram no mundo dos comboios.
-- Nas planícies.
-- A recolher os mortos das epidemias.
-- E atrás está o vento da terra.
-- Da ilha para o continente.
-- Este é um costume atlântico que está impregnado.
-- Não é por isso que nasce quem nasce e morre quem morre.
-- Não é neste instante para sempre uma divisão interna entre água e terra.
-- As vísceras dos porcos são lavadas no mar.
-- E são cheias de carne.
-- A visão então é alargada para o mundo.
-- Depois fica outra vez assim pequena.
-- Estou a ver o morto mirrado no quarto.
-- Num quarto de terra batida.
-- Todo o mundo vê os miúdos andando de pé descalço de roda da paisagem.
-- E é assim mesmo.
-- Nesse dia a cidade na outra margem da terra nasce.
-- E os seus corpos são vomitados.
-- E os Anemizados mais as suas jóias dão cumprimentos.
-- O presidente tem uma preocupação danada.
-- Está à porta com um sorriso aberto de coração cheio.
-- É no primeiro dia do ano.
-- Que se enche de carne a pele para parecer bem.
-- Não que seja um desejo meu.
-- Mas é nesse entender que se giza isso.
-- Para não se frequentar a escola.
-- Na hora os berços não se opunham.
-- Na hora dá para perceber a clara paisagem.
-- E depois como é depois do meu vómito?
-- Não estão a perceber.
-- Eu quero estar sossegado.
-- Comer o meu jantar numa posição fetal.
-- Com a graça do senhor.
-- O vómito veio a despropósito.
-- Se calhar estava a precisar disso.
-- Os pratos limpos da cozinha ficaram uma desgraça.
-- Não participei do antigo combate.
-- Nem disse nada a ninguém.
-- É um fedor de todo o tamanho.
-- Está alguém lá fora.
-- Com o tempo à espera.
-- De mais não tenhas dúvidas.
-- A rapariga terá um nome.
-- Mas eu vejo-a tão santa.
-- Vou vê-la pelo sexo dela.
-- É melhor.
-- Porque não tenho qualquer desejo de manter.
-- Ou tenho.
-- Talvez tenha.
-- Estou na primeira fila a ver os filmes inteiros do Piolho.
-- É sempre por aí.
-- Aquela luz farrusca.
-- Alguém que se escapa pelas sombras.
-- O fumo que vem.
-- O fumo que vai pelas sombras dos candeeiros.
-- Um farrapo de gente sentado na ombreira duma porta.
-- Com as carnes amareladas.
-- A mão estendida.
Na frente da tela, as passagens dos soldados dos pés apressados, nas ruas adormecidas, apesar de não estarem; mas se estão é porque o feiticeiro maldito quis.
-- Foi portanto a ideia do filme a todas as horas.
-- Eu vou por um tostão de vez em quando.
-- Não há uma dúzia de balcões.
-- Não está o expediente.
-- A portinhola.
-- O cigarrinho lá dentro.
-- A bilheteira enfumarada.
-- Alguém troca os dedos amarelos do tabaco por uma bexiga de pato.
-- Com carneiro afogado em sangue de burro.
-- Já basta que o filme se retracte.
-- Já basta que o filme não adormeça.
-- É ao mesmo tempo a flor do dia.
-- As sombras da noite.
Ao mesmo tempo teria de ir a correr para a cama com medo de não acordar amanhã; mas vai ser um belo dia amanhã, com um belo dia nas mãos; e é isso, a ver assim, que é melhor do que não ver o lado de lá da questão; mas é menos do que se faz todos os dias; é a falta de vontade que dá no que dá.



Cena
18) Retracto

(Os soldados invadem a cidade, casas destruídas, soldados ao assalto casa a casa, fugas, confusão total, mortos, mortos, mortos, fugir, fugir; o olho, no ar, que acompanha a cena, vê, de repente, um homem quadrado, moldado como se fosse um pão de forma, achatado; e o olho percebe, porque há uma passagem, umas escadas, que vão dar a esse pátio onde está o homem, e que servem de passagem a esse mesmo homem; essas escadas, essa passagem, tem dois macacos hidráulicos que comprimem os muros da passagem e estreitam-na; o homem foi passando e passando, e o corpo ficou espalmado, agora esse pátio é o seu refúgio; os soldados quando aí chegam julgam que é uma passagem como as outras, mas quando tentam passá-la percebem que é impossível, e não entram, só entra o homem achatado, e se o homem quiser fechar a passagem pode fazê-lo muito bem, basta que os hidráulicos apertem os muros, que se juntam, formando um só muro, e a passagem desaparece; querendo abrir a passagem basta descomprimir os hidráulicos e cá temos a passagem do homem enlatado; o olho vê isso e está cheio de ideias; os soldados continuam a matar na cidade).

Cena
19) Por esta razão e não por outra o estrondo da bomba embora me tenha assustado não me amedrontou

-- A um tempo passageiro.
-- Noutro complexo.
-- Nada aproveitável.
-- É que não posso deixar de ter sono.
-- Ao mesmo tempo gostaria de ficar acordado sempre.
-- Para controlar o tempo.
-- Era esse o desejo de qualquer um.
-- Que se dignasse perceber.
-- Se os meus passos iam para casa depois do filme a minha mente ia para dentro de mim.
-- Com o medo estampado em nada.
-- Não que me quisesse perder.
-- Mas pensava.
-- Se acaso seria necessário.
-- Ou pensava.
-- Mais ou menos.
-- Que era essa garantia.
-- Ainda que não me visse a mim mesmo.
-- Ou só como uma coisa a navegar no mar agitado.
-- Eu mesmo.
-- Com as breves ideias do que eu era sem querer ser.
-- Não nascendo.
-- Querendo antes retroceder.
-- Mas já não se podia fazer isso.
-- Com estas andanças todas de cima para baixo.
-- E de baixo para cima.
-- Como poderia ser?
-- Era o que me perguntava.
-- Mas o negócio continuava.
-- Em frente do largo.
-- Aquele mesmo que tinha nome.
-- Mas depois percebi que não era verdade.
-- Estava apanhado de todo.
-- O meu sexto sentido.
-- Olhava por mim mesmo.
-- Não se desgostava.
-- Era assim a terra do bom senso.
-- Sem a primeira volta a dar.
-- Os carecidos não se podiam mexer.
-- Mesmo que quisessem.
-- Eu estava a ver que deveria entrar por esse caminho.
-- Ainda que fosse improvável.
-- (Porque eu vou morrer), -- digo aqui e agora com todos os dentes que tenho.
-- Partidos e esfolados vivos.
-- Os desejos dos muitos contra os de alguns.
-- Deitados nas suas almofadas de igreja.
-- Está bem assim.
-- Ao que tudo indica é o princípio da previdência dos povos.
-- E se um diz o outro confirma.
-- Muito bem dito.
-- Na minha sala comprida.
-- Sabes tu.
-- Ou não sabes.
-- Estás ou não estás a olhar para o teu corpo?
-- Não o podes fazer.
-- O tempo que gastas todo nisso.
-- Ou então ficas a meditar.
-- Feito budista na tua cadeira.
-- O que não pode ser.
-- Porque toda a gente fica a ver.
-- É difícil encontrar uma solução para estas coisas.
-- A não ser que deixes o pensamento à solta.
-- E aí sim.
-- Vais para a tua família.
-- Assim mesmo.
-- Eu vou para a minha família.
-- Mas não tenho solução.
-- A partir do momento em que deixei a casa de meus pais fiquei por minha conta.
-- Era isso que eu não queria.
-- Era isso que me andava a chatear.
-- A remoer.
-- Todos os dias da minha vida.
-- Mas essa contradição não podia ter fim.
-- Senão todo o engendrado caía aos pedaços.
-- Como cheguei até aqui hoje?
-- A este estado?
-- À sala de jantar?
-- Com o casal pindérico na minha frente?
-- Dá-me cabo da tola.
-- Tenho de me agarrar a ele senão despisto-me.
-- A ver os outros.
-- A correr dum lado para o outro.
-- Não.
-- Os homens de fatos azuis impecáveis.
-- Sentados nas cadeiras.
-- E mulheres também.
-- Com as caras esfíngicas.
-- Numa mesa que há ali à frente.
-- Uma mesa enorme.
-- Para onde o Joni vermelhuço leva canecas de cerveja.
-- E frangos assados na brasa.
-- Estaladiços.
E toda a gente está bem-disposta, e daqui a pouco há folia, a não ser que o Joni mande vir a polícia, enquanto os rapazes também vão bebendo imperiais às escondidas do Joni; e estão numa galhofa, a correr dum lado para o outro, com as taças e os pratos, e essa caterva de serviços a prestar com grande velocidade, num corrupio.
-- Mas não é esse o intento.
-- Pode ser outro.
-- A minha vinda donde vim.
-- Eu sim.
-- Vim de lá de fora cá para dentro dum sítio para o outro.
-- Para me aquecer neste calor humano.
-- Porque vivo naquele quarto isolado.
-- Embora quisesse ficar com outras pessoas.
-- Embora estivesse e esteja com outras pessoas.
-- Embora esteja com meus irmãos estou sozinho.
-- Não sei porquê.
-- Ou sabendo não me quero comprometer a não ser às vezes.
E apesar do barulho dos homens de fatos azuis, mais forte é o barulho da rua, agora neste próprio momento, porque uma bomba arrebentou lá fora, e toda a gente ficou de boca aberta, e assustada.
-- Ainda vêm aí.
-- Ainda nos vão dar cabo do canastro.
-- É o que se diz à boca pequena.
-- Com a agravante de que não se percebe.
-- Se é por linhas e círculos que estão a vender o pescado.
-- Não
-- Nessa altura por dentro está a minha palavra.
-- É isso que sei.
-- Mas a minha palavra não serve para nada.
-- Berra no vazio e na inconsistência.
-- Como o tempo é de corrida.
-- Como o tempo se atrasa não sei.
-- Se em todo o mundo os desígnios de deus estão bem arquitectados.
-- Esse que ignoro.
-- Ainda que me tivesse redimido.
-- Com as suas janelas brancas de luz.
-- A entrar no seu templo.
-- Nos confins entre árvores frondosas.
-- Aí deus é o princípio que se percebe às vezes.
-- Pela claridade que mostra.
-- Que encandeia em vez de iluminar.
Por essa razão, o estrondo da bomba embora me tenha assustado não me amedrontou, porque, para mim, tudo está acontecendo longe todo o tempo.
-- É essa a verdadeira pendência.
-- Os alarves dos homens de fatos azuis lá pularam das cadeiras.
-- E o casal.
-- E todos os outros pularam como molas.
-- Depois ficaram sentados a comer.
-- Afinal tinha sido lá longe.
-- Daqui a pouco aparecia na televisão os estragos feitos pela dita.
-- Todos ficariam a saber que desgraça fora.
-- Era essa a primeira vez.
-- Se vais para casa desvia-te para o lado.
-- Se vais fornicar faz a mesma coisa.
São estes os conselhos, daqui do banco da cozinha, ao preço da chuva, e são conselhos muito bons, que devem a todos deslumbrar. 


continua...

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